ANTÓNIO ROMA TORRES


ESPELHOS MÁGICOS - A FILMOSOFIA EM MANOEL DE OLIVEIRA   

2022 

Edições Afrontamento


PRÉMIO ABEL SALAZAR (ENSAIO) 2021 

SOCIEDADE PORTUGUESA DE ESCRITORES E ARTISTAS MÉDICOS (SOPEAM)                

É preciso um desdobramento para nos vermos a nós mesmos, como num espelho, e podermos falar daquilo que vemos. Senão, não vemos.

Manoel de Oliveira

 


Manoel de Oliveira (1908-2015) deixou uma obra ímpar no cinema mesmo num nível que ultrapassa as fronteiras nacionais, inclusivamente pelo que foi a mais longa carreira de um cineasta, em actividade entre os 23 e os 106 anos de idade, desde o cinema mudo à tecnologia digital. Dirigiu um total de 32 filmes de longa metragem, sendo que numerosas das suas curtas metragens constituem também obras significativas.


António Roma Torres em Espelhos Mágicos (título tomado, no plural, de um filme do próprio cineasta) ensaia uma abordagem de toda a sua obra, segundo linhas determinantes, numa fase de desenvolvimento e afirmação, dando atenção a cada um dos pilares de uma obra cinematográfica, como Oliveira considerou, sucessivamente a imagem, a palavra, a música e o som, para considerar o essencial do seu cinema nos filmes rodados em volta dos 90 anos de idade (Viagem ao Princípio do Mundo, Inquietude e A Carta), e não menosprezando as variações da parte final da sua filmografia, entre o cinema lusíada de inspiração camoniana e pessoana, a interpelação do texto como objecto do cinema e as memórias e confissões que o seu pudor permitiu que fosse revelando, onde os planos fixos finais de John Malkovich em Um Filme Falado e de Michael Lonsdale em O Gebo e a Sombra como que balizam a última década em volta dos seus cem anos.


Ao mesmo tempo tenta clarificar o cinema de Manoel de Oliveira como uma forma de pensamento, desenvolvida com rigor e imaginação, numa verdadeira filmosofia, como “via radicalmente nova de compreender o cinema” proposta por Frampton (2006).

 

ÍNDICE


EXPRESSOManoel de Oliveira filmou uma forma de pensar Portugal? A resposta está hoje na Cinemateca, num livro novo e em três filmes raros, artigo de Cristina Margato 13.07.2023



Lançamento na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, Fundação Serralves, Porto, em 25 de Janeiro de 2023, às 18:30, com Regina Guimarães, escritora e cineasta, José Ribeiro, editor de Edições Afrontamento, e António Preto, director da Casa do Cinema Manoel de Oliveira.


Lançamento na Livraria Linha de Sombra, Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, Lisboa, em 13 de Julho de 2023, às 18:00 com Pedro Mexia, poeta e ensaísta, José Ribeiro, editor de Edições Afrontamento, e José Manuel Costa, director da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.


Recensão na Voz Portucalense, 1 de Fevereiro de 2023 pelo Director, Manuel Correia Fernandes - A sabedoria redescoberta dos filmes de Manoel de Oliveira


Disponível na Livraria de Serralves e online



                                                     TEXTO DA APRESENTAÇÃO FEITA NO LANÇAMENTO                                                DO LIVRO PELA POETA E CINEASTA REGINA GUIMARÃES

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«Viver não é pensar, é ser lembrado»

Teixeira de Pascoaes

 

 

 

Dias e noites houve em que, devido às reuniões preparatórias da improvável revista de cinema A Grande Ilusão, partilhei com o Dr. António Roma Torres e mais alguns carolas (a palavra e a coisa caíram, julgo eu, em desuso), o prazer de esperar pelo «próximo Oliveira» com a secreta esperança de sermos mais uma vez surpreendidos. Conheço o apreço que o Dr. António Roma Torres tem pela obra de Manoel de Oliveira, pelo que não me surpreendeu a notícia de que escrevera um estudo de fundo acerca da cinematografia oliveiriana. Em tempos muito recentes, fui tendo conhecimento das incursões do Dr. António Roma Torres na escrita dramática, li algumas das peças que regularmente publicou através da editora Afrontamento – e passo a citar:

 

 

 

O Rei da Áustria (2014) PSICODRAMA

 

"O Rei da Áustria" aborda o nascimento do Psicodrama desde o dia 1 de Abril de 1921, quando Jacob Levy Moreno dirige o primeiro psicodrama público num teatro em Viena, no ambiente de grande crise social e económica após a Grande Guerra de 1914-1918, até à inauguração da clínica psiquiátrica Beacon House com um teatro oferecido pela sufragista e milionária Gertrud Franchot Tone, mãe de um conhecido actor de teatro e cinema, numa América anterior à Segunda Guerra Mundial, no dia da abdicação de Eduardo VIII, quando a rádio e o cinema ensaiam os primeiros passos da globalização mediática que vai caracterizar o mundo pós-moderno.

 

Novo Céu (2014) JAIME CORTESÃO+LUCIANO PEREIRA DA SILVA/NUNO ÁLVARES PEREIRA + INFANTE

 

"Novo Céu" coloca em cena dois pioneiros dos estudos sobre a gesta náutica dos portugueses, Jaime Cortesão e Luciano Pereira da Silva em diálogo imaginado em dois momentos, nas vésperas da entrada de Portugal na Grande Guerra e na vigência de um dos últimos governos da república, com participação do grupo da Seara Nova, projectado em dois outros momentos da época medieval em que Nuno Álvares Pereira e o Infante Dom Henrique se encontram precisamente quinhentos anos antes, após a tomada de Ceuta e a saída da crise económico-social portuguesa na rota do hemisfério sul que os conhecimentos de astronomia dos portugueses permitiam.

 

César e Cícero (2016) CÔNSUL E GENERAL / ORADOR E PENSADOR

 

“César e Cícero” reúne três peças em um acto através das quais se tenta entender o papel complementar e ao mesmo tempo antagónico que no final dos seiscentos anos da República de Roma desempenharam os seus dois principais protagonistas políticos: César, cônsul em anos sucessivos e general que estendeu o domínio romano sobre um imenso território, e Cícero, orador insigne e jurista em cujo pensamento ainda hoje se funda a ordem jurídica de muitos estados modernos.

 

Tudo Espantalhos (2016) ABADE FARIA estudioso da hipnose vida de personagem de A. DUMAS «Conde de Montecristo»

 

"Tudo Espantalhos", título do drama em três actos e sete quadros sobre o Abade Faria, é a tradução adaptada de Hi sogli baji, frase em concani que o pai lhe segreda quando uma branca suspende o início do sermão no Palácio de Queluz, perante a Rainha D. Maria I e a corte que acorria à missa de Domingo. A peça recria a vida do Abade Faria, desde a chegada a Lisboa vindo de Goa aos 15 anos até à morte em Paris, mas também na ficção de Alexandre Dumas que o imortalizou em "O Conde de Montecristo", bem como a riquíssima época em que viveu, tanto na História de Portugal (entre o terramoto de Lisboa e as vésperas da revolução liberal de 1820) como na da Europa (entre o reinado de Luís XVI e a Revolução Francesa, e a queda de Napoleão).

 

Escura Primavera (2018) ANTÍGONA de Sófocles

 

Escura Primavera é uma adaptação de Antígona, de Sófocles, situada no ambiente de uma Clínica Psiquiátrica.
Seguindo a leitura proposta pelas psicanalistas Ginette Rainbault e Caroline Eliacheff em Les Indomptables, Figures de la Anorexie,  Antígona é uma paciente anoréctica em cujo retrato confluem textos de figuras da história e da cultura provavelmente afectadas por esta doença, como são Santa Catarina de Siena, Ellen West, Simone Weil e a beata Alexandrina Maria da Costa de Balazar, enquanto Polinices, que na tragédia grega está morto no início da acção, é um doente psicótico para cuja composição se usaram textos de Antonin Artaud e do personagem Johannes no filme de Carl Th. Dreyer, A Palavra. Paralelamente Creonte e Hémon são psiquiatras de diferentes gerações que encarnam os dilemas desta especialidade médica entre as descobertas científicas que permitem reduzir o caos interior e a necessidade de compreensão das dimensões mais complexas do ser humano.

 

Os Dois Sarafanos (2019) peça infantil

  

Peça de teatro infantil com as personagens Primeiro Rato, Segundo Rato - os dois Sarafanos do título - Reide Espadas e Alice, que explora de forma acessível e estimulante a noção de si e do outro e as possibilidades de assumir escolhas e de nos relacionarmos com os outros. 

Algumas das personagens e situações desta peça são livremente inspiradas ou aludem aos universos de Lewis Carroll, Walt Disney, Hanna & Barbera, Hitchcock, Conan Doyle e Alberto Caeiro, entre outros. 
Inclui cenário e personagens para recortar, permitindo a crianças e crescidos ensaiar a sua criatividade e experimentar criar a sua própria peça.


 A Paixão de José Ajudado (2020) José, Maria, Gabriel, Pilatos

 

 

José e Maria são pobres e amam-se. Precisam de ajuda. O Dr. Gabriel talvez seja um anjo. Anuncia a felicidade, mas os demónios que controla chamam-se doenças. Os outros, não sabe. A Dra. Conceição tem um catálogo de respostas, mas não sabe quais as perguntas. Nem quer perguntar. O que dá também tira. Não é uma graça. Ao Dr. Pilatos cabe julgar e lavar as mãos. A justiça é cega ou não quer ver. A cada passo se perde o poder e acumulam-se as culpas. Difícil viver ou só sobreviver. Nascer e morrer.

 

 

Até assisti com prazer a vários lançamentos dessas publicações, mormente sessões que incluíram leituras de trechos das citadas peças.

 

 

A escrita dramática de António Roma Torres apresenta, como alhures já me atrevi a aventar, certos aspectos que se me afiguram parentes de alguns protocolos de mise en scène / mise en signe que Oliveira brilhantemente desenvolveu. Estou a falar duma peculiar exigência de rigor (de concretude???) cada vez que se expõem factos e ideias. Estou a falar de dispositivos instaurados para garantir uma distanciação, digamos, semi-brechtiana, embora esvaziada de algumas ilusões e metas míticas do camarada Bertolt. Estou a falar do pressuposto de que a linguagem é, por inerência, um espaço de teatro, em cujo palco se travam de razões a memória e o pressentimento, a recordação e a projecção, a construção simbólica e a respectiva desconstrução, o ímpeto de cronografar e o élan que propulsa para a busca de absolutos relativos, recuando até aos passados do futuro e ou catapultando-se para outros futuros do passado.

 

 

Mas antes de conviver com o Dr. António Roma Torres em torno do fabrico da revista A Grande Ilusão, eu conheci a sua prosa sobre cinema através do meu amigo e colega de liceu José Henrique de Barros...

 

 

Sobre o espectador atento à actualidade, na dupla posição de médico psiquiatra confrontado com as dificuldades que os humanos vivenciam na sua diária luta por se manterem à tona e de crítico de cinema, dedicado à recepção dos novos filmes à medida que iam estreando nos ecrãs, progressivamente rarefeitos, da cidade do Porto, creio não ser um rematado disparate dizer que em ambos os ofícios exercidos por António Roma Torres se tratava de desempenhar um papel de mediação. Mediação do sujeito paciente nos conflitos que o opõem de mil sortes a si mesmo e mediação do potencial espectador que não conhece o filme que o espera, ou apenas dele sabe o que a propaganda apregoa. Diga-se de passagem que a crítica, na sua vertente nobre, deveria sempre muito mais do que fraca poesia publicitária ou a distribuição de estrelas em jeito de jurado-entertainer num concurso. Enquanto fazedor de críticas não angélicas, António Roma Torres notabilizou-se pela sua capacidade de desdobrar os filmes no intuito de revelar o seu alcance, o seu âmago, as suas dobras (ou seja: pistas e sentidos, coerências e paradoxos, afirmações e ambiguidades).

 

 

Neste seu estudo monumental ESPELHOS MÁGICOS, A FILMOSOFIA EM MANOEL DE OLIVEIRA (monumental no sentido estrito porque bem mais extenso do que as actuais teses de doutoramento), António Roma Torres alarga consideravelmente o horizonte e a ambição da sua escrevência, combinando História da(s) Arte(s) e das Ideias com Crítica de pendor filosofante de vários e distintos modos.

 

 

Colocando Manoel de Oliveira no centro dum universo que seria o cinema português, António Roma Torres empreende explorar não apenas os meandros da filmografia do autor, tematizando-os, problematizando-os, como também discorrer sobre as camadas que compõem a história do cinema português, no contexto do qual o realizador-mestre foi concretizando ou adiando os seus projectos, desde o advento do cinema falante à era do cinema digital, dando relevo aos grandes marcos que foram o cinema novo, a criação do Centro Português de Cinema, cinema ao serviço da revolução, a afirmação de «uma escola portuguesa», a irrupção de novos modus faciendi que os instrumentos e os suportes do cinema digital vieram a proporcionar na passagem do século XX para o século XXI.

 

 

Além dos filmes propriamente ditos – da sua escrita, feitura e difusão –, o Cinema toca variadíssimos domínios de actividade criativa, recreativa e socio-cultural, que incluem o cineclubismo, as formas de apoio à criação cinematográfica (questão do máximo relevo num país dotado dum micro mercado) bem como as áreas, mais ou menos efervescentes, de que o cinema se alimenta, sejam elas a literatura, a música, as outras artes visuais e performativas, o pensamento e a política. O empreendimento colossal de António Roma Roma Torres tenta abarcar tudo isso...

 

 

A forçosa economia de um artigo de jornal dedicado a uma estreia e destinado ao público leitor de determinado órgão da imprensa escrita (no caso deste crítico, o JN) é dificilmente comparável à bulimia de informações e saberes que este largo gesto ensaístico de António Roma Torres chama a si, um pouco como a criança buscando minhocas se recusa a deixar de levantar cada uma das pedras que ladeiam o seu caminho.

 

 

Acresce que ao debruçar-se sobre o cinema português, António Roma Torres não se interessa apenas por tudo quanto, de longe ou de perto, toca a sétima arte em geral e a de Oliveira em particular, mas também (e espraiadamente) sobre a questão da portugalidade, do ser ou não ser português, tal como alguns luso-pensadores, mormente poetas lato sensu (Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Eduardo Lourenço...), a discutiram ou inventaram.

 

 

Abro aqui um parêntese para recordar um trecho peculiar da entrevista que Manoel de Oliveira nos concedeu (a mim e ao Saguenail), no início do milénio, aquando das filmagens do LIVRO 1 d’O NOSSO CASO. A pergunta que insistentemente fomos lançando aos cineastas, ao longo de dois anos de encontros, era «O que é que é português no cinema português?». A essa interrogação, depois de citar abundantemente Régio acerca da originalidade ser sempre proveniente da ingenuidade, Manoel de Oliveira respondeu que português é aquilo que se parece à erva daninha, é aquilo que resiste e remoça por entre ruínas a seguir à impiedosa devastação.

 

 

Fechando este parêntese (do qual podemos reter, para posterior discussão, que portugalidade é porventura sinónimo de resiliência) e retomando o fio das reflexões que vou tentando tecer, é como se, para António Roma Torres, este seu tempo de escrita se apresentasse como um fecho de abóbada e, num contexto de ameaça de extinção da humanidade, não clamasse por posteriores visões de conjunto ou estudos de fundo. Mapa, rota e meta de algo semelhante à MAGNUM OPUS, o ouro na mira do escrevente tem mais de pedra filosofal do que de prosa filosofante.

 

 

Formulada esta minha espécie de perplexidade, devo confessar que Paulo Rocha, artista que para mim muito conta, não se cansava de afirmar que, após um cataclismo arrasador, qualquer estudioso oriundo de uma civilização superiormente equipada que pretendesse perceber o que vinha a ser Portugal não poderia encontrar melhor documentação do que o cinema português a partir da década de sessenta do século XX e essa sua convicção leva muita água ao moinho monumental de António Roma Torres. Creio que João Bénard da Costa não andava longe de pensar o mesmo...

 

 

Segundo o autor desta obra – e julgo não trair a sua ambição ao dizê-lo – que almeja ser de referência, tal como o fabuloso cantor Freddy Mercury tinha quatro dentes incisivos a mais, o cinema português seria como que uma mão com seis dedos, podendo talvez essa polidactilia explicar o motivo pelo qual os seus mais devotados amantes o encaram como um fenómeno monstruosamente lendário de per si. Prefiro não transformar esta curta intervenção numa sucessão de spoilers, porém não deixo de frisar que a figura da mão dotada dum dedo extra serve a António Roma Torres de grelha de classificação dos cineastas portugueses (50 nomes), em função de parentescos nem sempre limpidamente descritos, separando águas sem caracterizar objectivamente os caudais. Missão porventura impossível... Uma escolha é sempre o que próprio termo indica, mas a inclusão nos cineastas mencionados de um argumentista não realizador ou dum muito saudoso jornalista com obra documental mais que escassa (Paulo Filipe Monteiro e António Loja Neves) e a ausência de realizadoras multi-premiadas (como sejam Salomé Lamas, Susana Sousa Dias ou Filipa César, citando apenas três das quinze que vêm à cabeça) e de autoras cuja carreira foi abruptamente entravada, mas são hoje consideradas de primeiríssima importância (como é o caso Noémia Delgado e Manuela Serra) parece-me um pouco leviano e perpetuar a concepção que na arte como alhures, a masculinidade fala mais alto. Porém tal é o risco de pretender fazer caber enciclopédia em prateleiras pré-fabricadas. Ou não será?

 

 

O que mais mexe comigo na arquitectura de António Roma Torres – e, por conseguinte, mexe com as minhas construções pessoais, bastante alérgicas ao tribalismo identitário – é aquilo que, decerto toscamente, reconheço como uma tentativa de, apoiando-se no particularismo do «caso português» (do mesmo modo que se diz que um pilar sustenta) elaborar um discurso de pendor universalista, no sentido próximo do que lhe davam os filósofos das luzes, com a razão e a palavra supranacionalmente de mãos dadas na busca dos territórios avessos ao conflito, espaços atravessados por fonteiras onde reina a lei do consentimento. Talvez o espectro ameaçador do wokismo, «importável» (ou já importado) dos EUA, aliado ao doméstico fantasma, nunca totalmente desmantelado, do sebastianismo, quinto império e companhia, neste país reduzido a ser um quinto da Península Ibérica, explique a necessidade de edificação deste género de fortaleza. Apraz-me pensar que Oliveira deve andar perto da verdade quando diz que «português» é tão-só o que vinga na adversidade, como perto da verdade andou quando nos ofereceu (contradizendo-se alegremente) uma imagem de D. Sebastião utilizando a espada para morrer, sangrando, às suas próprias mãos. Essa imagem do NON é «impactante», enigmática porém límpida, e, diga-se de passagem, sempre me perguntei por que motivo Oliveira escolheu para a figura do Rei Menino, um rapaz tão parecido com a sua pessoa quando era moço ou com o seu neto Ricardo Trêpa, que só bastante mais tarde se estrearia em filmes do avô, com a neta de Agustina em contracena, no terceiro momento de INQUIETUDE. Do mesmo modo que no seu QUINTO IMPÉRIO, ONTEM COMO HOJE, Oliveira consegue via Régio, e por interposto Trêpa, propor do jovem rei Sebastião uma figura que mais não é do que um humano que carrega um destino demasiado pesado para a sua pequena pessoa.

 

 

Universalista porventura a contra-corrente dos relativismos em voga, António Roma Torres abraça muitos mundos quando literalmente se debruça, em plongée, sobre o mundo de Oliveira para evidenciar que o cinema do autor é um cinema de forma de exercício e de elaboração pensamento. Donde resultam muitas especificidades deste estudo, das quais destacaria duas:

 

 

1ª Uma análise que se caracteriza por uma descarada mistura de géneros, desde o quase mexerico ao quase filosófico, passando pelo enfoque histórico, sociológico, estético, etc.

 

 

2º Um diário de bordo que tem como rumo evidenciar algo que se me afigura tanto mais interessante quanto questionável – dizem que assim se faz ciência... – a saber que os filmes de Oliveira compõem, no fim de contas se bem feitinhas, um só filme fatalmente inacabado... Cabem neste dispositivo obras que partem de nacos de realidade do tipo «objet trouvé» – como sejam VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO, VOU PARA CASA e, até certo ponto, ANGÉLICA – é um debate que eu gostaria de ter com António Roma Torres...

 

 

Espelho meu, espelho meu, haverá no mundo – ta... ta... ta... – do que eu? A expressão «espelho mágico» integrou o meu conjunto pessoal de isotopias quando, criança, me foi contada a história da madrasta bera da Branca de Neve. Um outro espelho, do qual se pode, eventualmente, destacar o carácter prodigioso – aquele que Alice atravessa qual espectadora insatisfeita por se sentir acorrentada ao mundo «real» – veio um pouco mais tarde alterar a minha visão das potencialidades especulares. Na verdade, só com o filme ESPELHO MÁGICO de Manoel de Oliveira voltou essa expressão a fazer-me comichão nos ouvidos, numa época em que realizador não se cansava de citar o cineasta mexicano Arturo Ripstein que terá declarado lapidarmente que «O cinema é o espelho da vida.» «Não temos outro» acrescentava Oliveira, muito embora tenha sempre reconhecido o alto valor do teatro enquanto «escola da condição humana». E, enquanto espelho, esmiuçava, é também a sua memória. Creio que a formulação «o espelho da vida» pode tornar-se tanto mais inspiradora quanto literalmente interpretada (como aliás acontece amiúde com as declarações do mestre). Força e maldição da sétima arte, quer-me parecer. Ora, se aquilo que o espelho-cinema guarda é memória, mais ainda do que memória da vida é memória do cinema, pelo que cada imagem cinematográfica carrega com o peso de todas as que precedem e com o devir desfocado das que, na esfera do subliminar, despontam, independentemente das particulares autorias. No final do ESPELHO MÁGICO, filme baseado no romance A ALMA DOS RICOS de Agustina Bessa-Luís, o marido da protagonista em estado comatoso leva a sua esposa acamada de viagem e Oliveira coloca-nos perante o que ela supostamente vê, sendo que o espectáculo multidimensional da vida passou a ter os contornos peculiares do cinema. Ou seja: um longo gesto fílmico em travelling devolve-nos a visão que Alfreda, entre a vida e a morte, tem de monumentos, palácios, hotéis, obras de arte e canais percorridos de gôndola, na cidade de Veneza, seguida da visão que tem da Terra Santa, entre o Horto das Oliveiras e a Via Sacra, com seu marido a fazer de guia mudo. Impressão de realidade capaz de eivar de irrealidade a vida factual, revelando simultaneamente a respectiva descontinuidade e a aptidão do sujeito vivente a dotá-la de encadeamento, cadeias de causa e consequência, cronologia, etc. Por outras palavras, ao vestir as roupagens formais da realidade, o cinema constrói com esta última uma relação simbiótica que – e esta é a razão deste longo desvio – pode justificar que se olhe uma obra prolífica como o metódico desdobrar dum caminho.

 

 

Fazer de novo cinema, fazer novos cinemas exige porventura que se vão experimentando outras maneiras de falar dele, deles, e o/os fazer falar...

 

 

E aqui me calo, perdoai-me o desplante de já ter dito de mais. A maior qualidade deste livro de António Roma Torres é ele ser muitíssimo estimulante. Ouçamos o seu autor que, mais passional e fecundamente do que ninguém sobre ele se poderá espraiar, expandindo-o.

 

 


Porto, 25.01.2023


Regina Guimarães