António Roma Torres
O Último Cigarro
Edições Afrontamento
2019, editado em 2024
O ÚLTIMO CIGARRO desenvolve um dispositivo dramático que permite seguir o diálogo eterno do homem e da mulher no paraíso perdido e ainda não reencontrado, através dos personagens ficcionados, Paul, um escritor americano, e Iris, uma estudante universitária, saídos das páginas de Paul Auster (Smoke & Blue in the face, Hyoerion/Miramax, 1995) e Siri Hustvedt (Blindfold, Sceptre, 1993), na sala de trabalho no Brooklin, Nova Iorque, e metamorfoseando-se, em cenas em São Petersburgo, Lisboa, Marselha e Roma, no russo Mikhail Bakhtin, na alemã Hannah Arendt, na francesa Simone Weil e no italiano Roberto Rossellini e seus interlocutores, nos “tempos sombrios” de 1941/2, num momento de viragem da II Guerra Mundial, descobrindo-se ainda numa segunda linha os vultos de Lev Kuleshov e Dmitri Shostakovich, Walter Benjamin, Dietrich Bonhoeffer e Antonio Gramsci, Stefan Zweig e Bertold Brecht, até ao momento de redenção do personagem pirandelliano que Rossellini construiu como General della Rovere, interpretado por Vittorio de Sica, misturando-se nas formas da literatura, da música e do cinema, onde os manuscritos perdidos, os contos de Natal e o fumo dos cigarros confluem, como os rios por vales e montanhas alcançam o mar.
Lançamento do livro em Lisboa em 26 de Setembro de 2024 pelas 18h. na CINEMATECA PORTUGUESA com a livraria LINHA DE SOMBRA - programa
Lançamento no Batalha Centro de Cinema no Porto, no dia 11 Janeiro de 2025 pelas 16:30 com apresentação de Gabriela Moita (psicóloga) e Francisco Luís Parreira (escritor e dramaturgo), seguida da exibição na sala 2 de O General della Rovere (1959) de Roberto Rossellini pelas 19:15
O ÚLTIMO CIGARRO
António Roma Torres
Porto, Bar Batalha Centro de Cinema
11 Janeiro, 2025/ 16h30
Gabriela Moita
Em primeiro lugar falar do título “O último cigarro”.
O título dá-nos uma dimensão de finitude.
De se estar condenado.
A ideia do momento anterior à morte do condenado.
É portanto uma peça sobre a vida, exatamente, o MOMENTO que antecede a morte.
O Entre.
A ideia de passagem (passar a palavra, passar as ideias, passar as fronteiras, passar os manuscritos)
É uma peça que convoca a passagem nos seus múltiplos sentidos.
Para a passagem para a imortalidade (Passed away), por exemplo, e cito, “passamos a palavra, como se costuma dizer” (p.9).
Logo no Quadro I somos interpelados para esta questão na fala de Paul (p.15)
Paul
Quando pensas que vais morrer
é mais importante o livro que escreveste
ou um cigarro? (p.15)
Íris
O último cigarro do condenado (p.16)
E mais adiante:
Paul
E o manuscrito (...) o que vale um manuscrito? (P.17)
A palavra , a acção, permite a passagem da pessoa (corpo que morre) para o personagem que é eterno.
Também nos deixa a ideia de que a vida humana tem como característica a sobrevivência, em vida, e na morte, e cito “Nós usamos as palavras e as palavras por sua vez usam-nos, num jogo de sobrevivência e morte que é a característica da própria vida humana.” e a forma de sobreviver,/ à própria vida, enquanto dura,/ e à morte,/ faz-se através da palavra da ação. E convoco também o filósofo inglês JOHN Langshaw AUSTIN, (que por sua vez convocaria Wittgenstein Wittgenstein), para apoiar a ideia de que falar é agir “ "Quando falar é agir” no seu Actos de Fala.
Em epígrafe a citação de Luigi Pirandello, a partir da peça “Seis personagens a procura de um autor” diz-nos que “quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode rir até da morte. Não morre mais!” e aqui o autor vai-nos aproximando desta ideia de sobrevivência eterna.
É uma peça isomórfica, aquilo do que fala e a forma como o faz. Vejamos:
É uma peça sobre e com intertextualidade, sobre a polifonia da ficção (p. 162, na fala de Íris),
“A polifónica verdade da ficção/
Consiste em muitas/
Pequenas verdades.”
É uma peça com a presença clara de diversas vozes, uma peça polifónica, no dizer de Bakhtin. Um texto, ele próprio demonstrativo da polifonia textual. E cumpre o desejo de Walter Benjamim, expresso, nesta peça, na fala de Hannah Arendt “Escrever consiste largamente em citações,/ a mais louca técnica de mosaico imaginável” e acrescenta:
O ideal dele era produzir uma obra/ que consistisse inteiramente em citações,/Montada com tanta mestria que dispensaria/qualquer texto de apresentação.” (p.69)
E este desejo cumpre-se tão plenamente nesta peça que é difícil saber quem fala, não fossem os parêntesis.
Procura-se a verdade (Baktin (p.27): com a lanterna procuro a verdade/o homem honesto) e simultaneamente questiona-se a sua existência (Paul (p.13): tanto faz/ quanto sabemos a verdade de uma história?). A aproximação à verdade é conseguida exactamente através das diferentes vozes, da intersubjectividade, usando linguagem de outro contexto. E cito a fala de MIKHAIL (p. 27)
E a verdade sou eu e o outro,
A voz que tenho,
a voz que ouço.
Escrever é ter voz,
e a voz do outro em mim.
Se quero eu ouço vozes.
O mundo não se organiza
Em torno de uma voz única.”
(...)
“Escrever é uma forma de não estar só.
Há sempre alguém connosco” (p. 36)
Este enorme respeito às vozes de outros, é uma inevitabilidade, pois “tudo que digo/ tem um antes/ e um depois,/ ditos pelo outro. E a minha palavra/ Liberta o outro/ de principiar/ Ou de acabar. (p. 39 na fala de Mikhail).
Elena, na p. 40, reforça esta ideia “tudo começa antes e tudo acaba depois” e íris conclui na p. 48, “a autoria é sempre partilhada./ ninguém está completa/ E eternamente cercado.”
Esta peça revela as ligações entre as falas, os conteúdos e os autores, - a sociometria torna-se clara, como o arquitecto que mostra a verdade dos materiais.
Se ouvimos esta posição na voz de Bakhtin, ouvimo-la mais adiante na p. 61 na fala de Arendt que cita Walter Benjamim, transmitindo a ideia de nós somos uma cadeia, tudo se passou antes de nós e vai continuar depois de nós, como de existisse um acordo secreto/ entre as gerações passadas/ E a nossa. Uma espécie de inconsciente coletivo, nas palavras de Moreno (e ouso convocar mais um autor não estando visível e transversal a toda a peça, não fosse Roma Torres um psicodramatista). E vemos que esta convicção é partilhada pela própria Hannah Arendt quando na p. 70 referindo-se a Rachel Varnhagen diz que foram precisos 63 anos “para aprender o que começara/ 1700 anos antes/ do seu nascimento. /A História do individuo é mais antiga que o individuo /como produto da natureza, /o destino do individuo começa bem antes.
A passagem é também a passagem da história – o antes e o despois. O passado e o futuro A produção é feita no momento presente mas esse momento presente é construído a partir do passado para o futuro de tal forma que só passará para o futuro através das ideias .
O autor diz-nos (p.9), que, é uma peça sobre o diálogo, sobre “duas pessoas que conversam” (p.9), sobre o Encontro, acrescento eu. Acrescentaria ainda que é uma peça sobre pessoas, personagens (e sublinho personagens, a elas voltarei) que num dado momento histórico estão de passagem, normalmente em fuga, ou na cadeia. A maior parte destas pessoas passaram esta fase dramática no ano de 1941/1942 .É uma peça sobre relações (as relações entre as pessoas, Trotski esteve hospedado em casa dos pais de Simone Veil na sua passagem por Paris a caminho do México onde seria assassinado (p. 123); Walter benjamim jogava Xadrez com Brecht na Dinamarca) as relações entre os realizadores (p.33 Lev Kuleshov ensinou Eisenstein e Pudovkin), as relações entre o tempo (1990, 1941, 1942, 2024) as relações entre as ideias (criação, acção pensamento, palavra). É uma peça sobre conexões, sintonias, entre pessoas ou entre ideias. São notas biográficas sobre vidas de pessoas que pensaram que agiram que fizeram qualquer coisa … que acrescentaram, que deixaram a outros- passaram - e por isso sobreviveram à morte.
Direi, ainda, que é um elogio ao pensamento, ao ato de pensar, ao ato de produzir ideias, ideias nas palavras de Simone Weill, absolutamente novas “que possam permitir uma nova forma de organizar a vida daqueles que as pensam e dos que escutam” .
A noção de que O MOMENTO, apesar do antes e do depois, é relevante, no sentido em que determina o que se pode fazer:
Iris (p. 20)
“Quando se está sitiado
O mais importante é conseguir
Que o sitiador acredite
Que na cidade não há fome
E que continue tudo igual.”
Ou na fala de Elena (p. 36)
Fazer um filme,
Compor uma ópera,
Escrever um livro,
É uma luta com o exterior
E com múltiplos poderes.
Sempre o será”
Ou dito de outra forma, nas palavras, aqui não ditas de Austin, O significado de um enunciado depende do sujeito e do momento..
Outras ideias em cadeia que encontramos nesta dramaturgia:
A necessidade de se fazerem escolhas e a LIBERDADE de as fazer. A escolha é livre? A impossibilidade de se viver sem escolher. Herói ou Cobarde? inimigo ou
- A SOCIOMETRIA – podemos fazer vários sociogramas:
· dos lugares, das ideias, das pessoas, das linhas condutoras da peça, dos actos (manuscritos, fugas, xadrez), dos filmes...
A ideia de que cada pessoa pode fazer qualquer coisa dizia que todas as pessoas são intelectuais, mesmo se nem todas exercem essa função na sociedade podemos falar de intelectuais mas não podemos falar de não intelectuais porque não existem. Uma qualquer pessoa pode fazer nascer novos modos de pensar .
Para além da importância do pensamento, é sublinhada a liberdade do pensamento: em paradoxo, refere-se a prisão. Lugar de condenação aparece como um lugar de grande produção como é o exemplo de Gramsci e Bonhoeffer.
A consciência de que há um momento em que tudo muda. Os prisioneiros passam a heróis , os heróis a inimigos.
O cinema e a música surgem igualmente como registos. Formas de contar histórias, formas de procurar a verdade . Embora, nas palavras de Paul, (p. 139):
“Roberto Rossellini não acreditava
poder fazer outra coisa
que não responsabilizar-se
pela colocação da Câmara
pelo que a sua câmara via . “
e interroga-se:
“O final cut pertencia a quem?
Pode o espectador ter liberdade?”
A peça desenvolve-se através de um diálogo entre duas pessoas (curiosamente personagens de ficção – Paul Auster 1990/Wayne Wang 1995:Smoke e Siri Hustvedt 1992/The Blindfold) que vão falando de várias outras pessoas, agora pessoas concretas (Bakhtin/Elena; Hannah/Heinrich; Simone/Joseph-Marie; Roberto Rosselini/Roswitha) e em diversos quadros experimentando/dramatizando/re-apresentando o papel dessas pessoas reais. Deixando claro que ( P.70 Hannah Arendt) “as recordações mais antigas/ do género humano estão ligadas/ao estado de coisas mais recente,/ E ultrapassadas assim as maiores distâncias/do tempo e do espaço/.
Trata-se de um espectáculo constituído por nove quadros que conjugam tempos antigos e tempos atuais, numa ideia de continuidade. A cada quadro da atualidade, passado em Nova Iorque e representado pelas duas personagens de ficção, segue-se sempre uma época mais antiga em um outro lugar: São Petersburgo, Lisboa, Marselha, Roma e finalizando na atualidade, em Nova Iorque. Portanto começamos na atualidade terminamos na atualidade (como deve ser feito uma sessão de psicodrama) e em cada quadro vai-se falando sobre cada uma destas épocas.
O cinema está sempre presente, como não podia deixar de ser (ou não fosse Roma Torres um homem que pensa o cinema), a ilustrar as histórias contadas. Vários excertos de filmes são falas dos realizadores, que acrescentam ao que é dito ,ou ilustram o que é dito. Trata-se, também por este motivo, de uma peça muito visual.
Podemos encontrar no final uma lista de notas biográficas sobre as 72 pessoas reais referidas na peça. Pessoas/personagens que viveram em tempos de guerra e perseguições várias, todas com vidas com fins dramáticos. São exceção a estas pessoas os atores de cinema e de teatro e alguns realizadores, embora estes atores e os realizadores que aqui aparecem se refiram a estas épocas e muitas vezes a estas outras pessoas que compõem e que aparecem na peça.
Sublinhava a densidade e quantidade de informação que Roma Torres aqui conseguiu compilar.
Espero, em breve, poder ver esta dramaturgia nos nossos palcos.