O CONCEITO DE FOME DE ACTOS NO PENSAMENTO PSICODRAMÁTICO
António Roma Torres
Roma-Torres A (2018) - O conceito de fome de actos no pensamento psicodramático, Psicodrama, 9, 39-50
"Aquele que fala está ele próprio a responder num grau maior ou menor. No fim de contas, ele não é o primeiro a perturbar o silêncio eterno do universo." MIKHAIL BAKHTIN, 1972, Problemy poetiki Dostoïevkovo, Problemas da Poética de Dostoievski.
Etimologicamente psico-drama compõe-se com o sufixo grego drama que quer dizer acção. Moreno ao cunhar o nome desta nova forma de psicoterapia colocava a ênfase precisamente na acção a que de certa maneira a psicanálise então dominante dava um sentido sintomático, expresso na designação acting-out. O oposto seria o acting-in que Adam Blatner levou ao título de um dos seus livros e que Moreno designou por acting-out terapêutico. No contexto psicanalítico acting-in tem sido considerada a actuação na sessão terapêutica, portanto mais associada ao falar do que ao agir.
Mas quer então dizer que para o pensamento psicodramático agir encerra naturalmente uma espécie de virtude terapêutica? O próprio Moreno contrariou essa ideia ao escrever que "o psicodrama não é uma cura pela actuação, como alternativa para uma cura pela conversa. A ideia não é que os sujeitos representem um para o outro, passando ao acto tudo o que lhes acode à mente - sem reservas, num exibicionismo ilimitado - como se esse tipo de actividade pudesse, por si mesmo, produzir resultados. Com efeito é aí que a experiência do director na arte do psicodrama contará ao máximo. Assim como um cirurgião que conhece o estado físico do seu paciente limitará uma operação ao prazo de tempo que o estado desse paciente possa suportar, também o director do psicodrama pode deixar inexpressados e inexplorados muitos territórios das personalidades dos sujeitos, se as energias destes não forem iguais ao esforço exigido durante esse tempo."[1]
Para Moreno a fome de actos corresponde a um estadio inicial do desenvolvimento infantil. Todas as crianças, poderíamos dizer, nascem hiperactivas. Por natureza. A dada altura, no entanto, a criança deixa de estar completamente imersa na acção (Moreno diz também imersa no momento) e a fome de actos é substituída, parcialmente, por uma fome de sonhos. É possível que tal não se deva totalmente a uma maturação do sistema nervoso, mas esteja ligado à organização cognitiva da sua experiência, naquilo que Moreno chamou matriz de identidade. Moreno falou da brecha entre a fantasia e a realidade e isso corresponde, no desenvolvimento do núcleo do eu de Rojas Bermudez, à delimitação da área ambiente, onde se depositariam as acções. Um viés da psicologia freudiana, e posterior, coloca toda a atenção no que se passa nas outras duas áreas (mente e corpo).
Então a disposição para agir sofre um processo de contenção normal no processo de desenvolvimento que está associado à separação entre realidade e fantasia. Moreno de uma forma muito interessante não infere daqui que a acção é pura e simplesmente substituída pelo pensamento ou pela imaginação. Moreno escreve que se formam "dois conjuntos de processos de aquecimento preparatório, um de actos de realidade e outro de actos de fantasia".[2] Até este momento todos os actos se estabeleceriam através dos papéis psicossomáticos, a partir de agora desenvolvem-se os papéis sociais através dos actos na realidade não ligados a funções fisiológicas, e os papéis psicodramáticos, ligados aos actos de fantasia, inicialmente na actividade de brincar.
Se revirmos os escritos de Moreno podemos talvez dizer que à contenção se poderia também associar talvez paradoxalmente a ideia de espontaneidade. "O agente da improvisação, poeta, actor, músico, pintor, encontra seu ponto de partida não fora, mas dentro de si mesmo, no ‘estado' de espontaneidade. Este não é algo permanente, algo estabelecido e rígido como são as palavras escritas ou as melodias; é, contudo, fluente, de uma fluência rítmica com altos e baixos, que cresce e desaparece gradualmente como actos de vida e, no entanto, diferente da vida. É o estado de produção, o princípio essencial de toda a experiência criadora. Não é algo dado, como as palavras ou as cores. Não está conservado, nem registado. O artista improvisador deve ser ‘aquecido', deve fazê-lo galgando a colina. Uma vez que tenha percorrido o caminho ascendente até ao estado, este desenvolve-se com toda a sua potência e energia."[3]
Emoção generativa
Dá a impressão que para Moreno a fome de actos não dispensa ou equivale ao aquecimento. Moreno na citação anterior parece ter em vista o acto criador, artístico, mas a verdade é que no parágrafo imediatamente seguinte mostra que está a falar daquilo que designamos por emoção e, ao mesmo tempo, de relações externas, no sentido de interpessoais. "Além disso, o ‘estado' não surge automaticamente; não é pré-existente. É produzido por um acto de vontade. Surge espontaneamente. Não é criado pela vontade consciente, que actua frequentemente como barreira inibitória, mas por uma libertação que, de facto, é o livre surgimento da espontaneidade. Termos como ‘emoção' ou ‘condição' tão pouco cobrem também totalmente a ideia. Pois, amiúde, o ‘estado' não só motiva um processo interno mas também uma relação externa, social, isto é, uma correlação com o ‘estado' de uma outra pessoa criadora".[4]
A vivência do corpo, por seu lado, traduz-se ao nível da percepção interna como uma emoção, mas ela própria é guiada pela vontade num processo de aquecimento em que o psicossomático se pode converter em acção. Moreno teoriza esse processo: ao contrário do que nos habituamos a pensar, o saudável não é saber traduzir as emoções ou os sentimentos em palavras ou pensamentos - objectivos por vezes identificados com as talk therapies - mas sim transformá-los em acções.
A condição fisiológica, interoperceptiva, constitui o que Moreno designa como arranque. Interessa agora compreender a intervenção do pensamento (correspondente à área mente do núcleo do eu de Rojas-Bermudez/Pichón Rivière) neste processo. Mikhail Bakhtin, linguista e filósofo russo que, no mesmo período em que Moreno iniciava o psicodrama em Viena, desenvolveu em São Petersburgo o pensamento dialógico e polifónico, considerou no seu primeiro livro, Para uma Filosofia do Acto[5], escrito em 1920 mas vindo a público apenas em 1986, que "qualquer pensamento meu, juntamente com o seu conteúdo, é um acto ou acção que realizo - é o meu próprio acto ou acção individualmente responsável. É um de todos aqueles actos que fazem da minha vida única inteira um realizar ininterrupto de actos. Porque a minha vida como um todo pode ser considerada um complexo acto ou acção singular que eu realizo: eu realizo, isto é, eu executo actos, com toda a minha vida, e cada acto particular e experiência vivida é um momento constituinte da minha vida - da contínua realização de actos. Como um acto executado, um dado pensamento forma um todo integral: tanto o seu conteúdo-sentido quanto o facto da sua presença na minha consciência real - a consciência de um ser humano perfeitamente determinado - em um tempo particular e em circunstâncias particulares, isto é, toda a historicidade concreta da sua realização - ambos os momentos (o momento do conteúdo-sentido e o momento histórico-individual) são unitários e indivisíveis na avaliação deste processo como minha acção ou acto responsável. Mas pode tomar-se o momento do conteúdo-sentido abstratamente, isto é, um pensamento como um juízo universalmente válido."[6]
Pensamento participativo
Bakhtin - e na sua esteira John Shotter, o teórico da comunicação universitário britânico que se interessou pela psicoterapia nomeadamente sistémica e colaborativa, particularmente representada pelo norueguês Tom Andersen - detém-se numa categoria de pensamento que denomina participativo, ou seja, não indiferente, engajado, comprometido, envolvido, relacionado ou interessado.[7]
De notar que Tom Andersen foi o criador no campo das terapias familiares da equipa reflexiva, que se desenvolve surpreendentemente a partir da postura estratégica da Escola de Milão na direcção de uma postura colaborativa, com o carácter de terapeuta auxiliar do membro de uma plateia perante o qual a família-paciente se expõe com um evidente paralelo com os instrumentos do psicodrama e as fases da sessão de psicodrama, nomeadamente o público ou auditório, e a fase de comentários ou partilha.
Deste modo poderíamos formular a área corpo como aquela onde a fome de actos se manifesta no plano emocional, e a área mente onde ela se elabora num processo de aquecimento, primeiro geral e depois específico, à procura de um papel sem o qual não tem acesso à área ambiente e não pode, portanto, libertar-se.
Na transição do aquecimento geral para o aquecimento específico podemos considerar útil a noção de meta-papel que Adam Blatner introduziu como "o nível que modula que papéis são jogados quando e como"[8]. "As pessoas aprendem a usar o meta-papel assim que aprendem a fingir e as primeiras sugestões podem ser encontradas na criança antes de um ano de idade com o surgimento do brincar. O faz-de-conta é perceptível durante o segundo ano de vida. Essa é a consciência de que a actividade pode ser entendida como real e não real, dois quadros de referência diferentes para comunicações interpessoais. Pode ver-se o meta-papel operar quando a criança sai do papel e comenta sobre o que está a fazer: ‘não, eu não gostei disso, vamos mudar', ‘ai, tu estás a jogar duro demais', ‘ok, agora eu quero ser o bébé e tu serás a mãe' ou ‘quero ir ao quarto de banho'. Estas expressões ilustram a mudança do papel para o meta-papel."[9]
Catarse integrativa
Só quando se conclui o aquecimento específico e se define um papel, e um tempo e um lugar, é que nos é possível entrar em acção, na cena como na realidade, ou seja, verdadeiramente uma catarse. O termo catarse tinha uma tradição ligada com a acção, e com o teatro, na sua origem aristotélica, mas como que ganhou, no pensamento moderno, o simples significado de expressão em palavras ou em pensamento. Passou a privilegiar-se o modelo confessional, no registo religioso ou no moderno registo psicológico. Eu passo a procurar alguém que me ouça em vez de alguém com quem interaja.
Moreno percebeu que "a catarse de uma pessoa depende da catarse de uma outra pessoa. A catarse tem de ser interpessoal."[10] Isto não se aplica unicamente a um momento especial de terapia ligado a uma mudança e em que possa haver uma revelação ou um insight mas a toda a acção.
Ao estudar a linguagem, mais que o aspecto subjectivo, Bakhtin deu uma possibilidade ao diálogo que amplia a perspectiva de Buber e de certa maneira estava contida na consciência improvisacional de Moreno. Moreno, aliás, a uma psicoterapia que fosse, melhor dizendo, "um monólogo na presença de um intérprete", contrapunha que "um diálogo, não só no sentido socrático mas também na acepção comum, é um encontro de duas pessoas, cada qual com uma igual oportunidade de combater e responder"[11].
Glenna Gerard[12], discípula do físico e relevante autor na área do diálogo David Bohm[13], faz um interessante paralelo entre o diálogo e as práticas de improvisação teatral (improv), ambas traduzidas pela atitude "sim-e", ou seja, "receber o que lhe for oferecido dizendo sim e juntando a sua contribuição". Este diálogo em acção seria uma espécie de pensamento em conjunto, como a música no jazz improvisado que Katia Castro Laszlo e Alexander Laszlo[14], do Monterrey Institute of Thecnology, consideram uma boa analogia. "Uma sessão de jazz de improvisação é uma boa metáfora para uma conversa próspera - jazz e conversas podem gerar suficiente emoção e energia positiva para os manter envolvidos. Numa jam session pode admirar-se a fluidez e graciosidade das melodias geradas numa construção das contribuições dos músicos umas sobre as outras. Os músicos estão verdadeiramente a ouvir-se complementando e promovendo as ideias musicais uns dos outros. Para músicos de jazz participarem numa jam session precisam de ter dedicado uma enorme quantidade de tempo e energia a aperfeiçoar as suas habilidades de executantes em cada um dos instrumentos, mas também devem ter aprendido a tocar juntos - para co-criarem. Conversas prósperas como jazz improvisado são processos co-criativos que envolvem competência, apoio mútuo e enriquecimento. Conversas prósperas são desafiadoras e divertidas".
Este envolvimento dialógico na acção percebe-se melhor ao considerar, com Bakhtin, a fala (utterance) como uma mais pequena unidade de conversação que a frase ou o discurso. Estamos assim perante um texto co-construído. E histórico no sentido em que está ligado a um momento.
Realidade alargada
A questão da linguagem adquire para uma teoria validada num contexto mais contemporâneo uma importância primordial, que não é, contudo, retirada à esfera do acto, como se fosse exclusivamente da esfera da mente.
Jerome Bruner seguindo John L. Austin considera que "a linguagem não se adquire no papel de espectador, mas através do uso" e "a criança não está apenas a aprender o que dizer mas como, onde, para quem e sob que circunstância"[15]. Como o autor salienta, neste inevitável e muito precoce processo de contar histórias ("se as crianças entrarem numa situação em que devem evitar que outra pessoa descubra algo que elas esconderam, então até as de dois/três anos sonegarão informação relevante à pessoa que procura e, inclusive, criam e fornecem-lhe depois falsa informação, como enganadoras pegadas que afastam do tesouro escondido"[16]) as crianças "começam a reconhecer bastante cedo que o que elas fizeram ou planeiam fazer será interpretado não apenas através do acto em si, mas também pelo que elas dizem a tal respeito", ou seja, "logos e praxis são culturalmente inseparáveis".[17]
"A criança, no ambiente natural, tem os seus próprios desejos; mas em virtude de contar com o afecto da família, tais desejos criam por vezes conflitos quando colidem com os desejos dos pais e dos irmãos. A tarefa da criança quando o conflito aumenta é equilibrar os seus próprios desejos e o seu compromisso com os outros na família. E ela bem depressa aprende que a acção não basta para atingir tal fim. Contar a história certa, apresentar as suas acções e objectivos sob uma luz justificadora é muito importante. Alcançar o que se pretende significa, muitíssimas vezes, arranjar a história certa. (...) Mas arranjar a história certa, opor com êxito a própria contra a do irmão mais novo, requer o conhecimento do que constitui a versão canonicamente aceitável. Uma história ‘certa' é a que liga a versão própria, através da mitigação, à versão canónica.""[18]
Bruner cita uma comunicação pessoal de Joan Lucariello, autora de A Study in Narrative Thinking in Children, para estabelecer que "a primeira descoberta foi que as histórias anticanónicas produziram uma enchente de invenção narrativa, em comparação com a canónica - dez vezes mais elaborações".[19] Bruner, num capítulo significativamente intitulado O Ingresso do Significado, conclui que "o nosso sentido do normativo é alimentado pela narrativa, mas também assim acontece com o nosso sentido de ruptura e de excepção; as histórias fazem da ‘realidade' uma realidade atenuada".[20]
Bruner desenvolve o seu argumento em torno da autobiografia e constata que a autobiografia "é um relato feito por um narrador no aqui e agora, sobre um protagonista que tem o seu nome e existiu num passado, desembocando a história no presente quando o protagonista se funde com o narrador."[21] O self como narrador relata e justifica, mas enquanto protagonista "está sempre, por assim dizer, apontando para o futuro."
Esta fusão do protagonista com o narrador frequentemente não é harmoniosa. Ou como escreve Olivia Lousada "infelizmente a vida deixa muitas vezes as pessoas com muitas emoções e ansiedades não resolvidas e turbulentas que inibem a espontaneidade. A repetição dos papéis criados por essas ansiedades é também uma ‘fome de actos' ou um ‘alcançar' a vida. Mesmo se disfuncional algumas vezes, a repetição destes papéis pode ser vista como uma tentativa natural de resolver sentimentos conflituais como ganhar ou recuperar o equilíbrio interno e a espontaneidade. Com o psicodrama o cliente pode aceder à ‘fome de actos' considerando a limitada amplitude dos papéis que desempenha ou dos que percebe serem representados pelos outros em seu redor. Redescobrindo a espontaneidade e uma mais larga escolha de papéis os clientes muitas vezes encontram novas formas de compreender o comportamento dos outros e o seu próprio."[22]
A sensação que frequentemente articula o protagonista e o director no início de uma dramatização é a de entrar numa aventura, nenhum deles sabendo ao certo onde o barco irá atracar e se os ventos da tempestade não irão perturbar a viagem.
Do que se trata é de criar uma realidade alargada (surplus reality) onde o protagonista possa ter uma experiência que a vida não lhe proporcionou e assim possa na última fase da sessão, e depois dela, incorporá-la no âmbito do seu self narrador. É, se assim se puder dizer, o self protagonista que desbrava o caminho para o trabalho do self narrador. Há que evitar, contudo, uma dramatização fechada, já com solução à vista, que, por muito avisada que seja, nunca será verdadeiramente terapêutica. A fome de actos que não encontrava viabilidade nas condições da vida real pode assim ter uma oportunidade na realidade dramática e, mais que isso, pode ser um factor de enriquecimento da experiência do indivíduo.
Diálogo e incerteza
António Damásio[23] tem procurado integrar, num modelo teórico neurobiológico, as emoções e sentimentos e a razão e os pensamentos, valorizando quer a observação clínica e experimental, quer o modelo introspectivo, mas no que respeita ao comportamento, externalizado, pondo mais frequentemente a tónica na tomada de decisão e não tanto num processo interaccional que é o do meio natural.
Esta temática inclusivamente tem sido objecto de atenção da pesquisa e reflexão na área da gestão económica e empresarial[24]. Gringerenzer (2007) distingue uma racionalidade lógica de uma racionalidade eco-lógica ou ligada (bounded), valorizando a interacção com o ambiente, a intuição (gut feelings) e a tolerância à incerteza, aproximando-se eventualmente mais da espontaneidade moreniana que do inconsciente freudiano que se sugere no título.[25]
Peter Rober[26], na área da terapia familiar de que, segundo Compernolle[27], Moreno terá sido "um pioneiro não reconhecido", estabelece o "diálogo de pessoas vivas", numa perspectiva "inspirada por Bakhtin, Volosinov e Shotter", não apenas na sala de terapia mas na vida real onde se manifestam os problemas ou as dificuldades. Rober cita Emerson, um estudioso de Bakhtin: "O diálogo não é de modo algum uma relação segura ou protegida. Sim um Tu está sempre presente mas excepcionalmente frágil, o Eu deve criá-lo (e ser criado por ele) num gesto simultâneo e mútuo, repetidas vezes, sem nenhuma autoridade especial ou promessa de estabilidade...O desequilíbrio é a norma."[28] Nas palavras de Moreno "cada um com uma igual oportunidade de combater e responder".
Para John Shotter[29] trata-se de um "conhecimento de 3º tipo" (knowledge of 3th kind), que sucede à teoria geral dos sistemas e à cibernética de 2ª ordem, como formulação adequada à complexidade organizada. Não conhecer o quê ou como mas de dentro (withness).
Teatro e metáfora
Enquanto drama etimologicamente quer dizer acção, teatro refere-se a um lugar para ver.[30] Ainda de um ponto de vista etimológico teatro e teoria têm a mesma raiz e teoria refere-se a espectáculo, que tanto poderia querer dizer teoria como especulação. Se virmos o pensamento de Moreno com a distância que a história permite, poderá considerar-se que ele usou o teatro como metáfora e foi oscilando, como Bruce Wilshine, entre considerar o teatro como sendo life-like e a vida como sendo theatre-like.[31]
Esta sobreposição e transição suave (cross-fading) permite a Moreno identificar a posição face às emoções e sentimentos de Freud com a do célebre teórico e encenador de teatro Stanilavski, com notória influência num método de representação mais popularmente associado ao Actor´s Studio e a uma geração de actores de Hollywood como Marlon Brando, Paul Newman ou Montgomery Clift, que fez o papel de Freud no filme que John Huston lhe dedicou[32], entre muitos outros. E por extensão talvez não excluíssemos Damásio desta tradição.
Moreno considera que Stanislavski "limitou o fator espontaneidade à reativação de recordações carregadas de emoção. Essa abordagem vinculou a improvisação à experiência passada, em vez do momento. Mas, como sabemos, foi a categoria do momento que conferiu à obra de espontaneidade e ao psicodrama sua revisão e direcção fundamentais. A ênfase sobre as recordações carregadas de emoção coloca Stanislavski em curiosa relação com Freud. Também Freud tentou fazer seu paciente mais espontâneo, assim como Stanislavski procurava fazer os seus actores mais espontâneos na representação de papéis conservados. À semelhança de Stanislavski, Freud tentou evocar a experiência real do sujeito, mas preferia também as experiências intensas do passado ao momento - se bem que para uma aplicação diferente - no tratamento dos distúrbios mentais. Embora trabalhando num domínio diferente, Freud e Stanilavski eram contrapartes que se correspondiam um ao outro."[33]
Reaproximar as emoções em relação ao presente (hic et nunc) deve ser um dos objectivos do psicodrama, relembrando que, na concepção de Moreno, a fome de actos começa a ser inibida no desenvolvimento da criança quando ela toma consciência da brecha entre realidade e fantasia, e ao mesmo tempo do passado e do futuro.
A noção de marcador somático de Damásio não tem que ser confinada à evocação de situações do passado e pode traduzir a complexidade de um reconhecimento da fome de actos, numa estrutura progressivamente mais complexa após os dois anos de idade. Pode identificar-se com as noções de zona e de arranque de Moreno à medida que o indivíduo alarga os seus papéis. Os papéis sociais e psicodramáticos ganham espaço e até certo ponto integram os papéis psicossomáticos.
Damásio associa a activação dos marcadores somáticos mais frequentemente a imagens externas mas podemos admitir que essa activação surja regularmente, sem nenhum significado previamente atribuído apenas como manifestação oscilatória característica dos organismos vivos.
Torna-se necessário, portanto, um ajustamento ao nível da mente para que o indivíduo se envolva numa acção. Do mesmo modo é de admitir que quando a necessidade de acção é de natureza racional, pragmática, o mesmo processo de aquecimento e de transição do meta-papel para um papel se inicie procurando os marcadores somáticos de um aquecimento específico e, portanto, garantindo um desempenho espontâneo, novo e adequado. Em ambos os casos, opera-se uma sincronização do emocional e do racional na acção. Quando este processo nas situações reais mostra algumas dificuldades a sua execução na cena dramática, sem a irreversibilidade da vida real, pode constituir uma excelente oportunidade que respeita a fome de actos do indivíduo.
Estamos a propor um modelo em que o arranque para o acto pode surgir na representação da mente ou na representação do corpo. No primeiro caso ele precisa de um aquecimento que associe emoções na representação do corpo (que poderão ser os designados marcadores somáticos de Damásio) em ordem a garantir um nível adequado de espontaneidade, definida por Moreno como um grau de liberdade. No segundo caso surge primeiro a emoção na área do corpo, e que se traduz no pensamento, mas principalmente na preparação para a acção, através de um processo de aquecimento que determina que papel, quando e como, de acordo com a noção de meta-papel de Adam Blatner.
Ronda Blair[34], professora de teatro interessada também nas neurociências, cita Damásio: "As emoções desenrolam-se no teatro do corpo. Os sentimentos desenrolam-se no teatro da mente."[35] Mas o verdadeiro é o teatro do ambiente, área de representação do exterior, seja na vida, seja na cena, e onde acontecem os actos. Acting como o objecto de estudo de Rhonda Blair pode significar representação (no teatro), mas também simplesmente actuação (na vida).
Que esta actuação seja fruto de um processo elaborado não contraria a noção de espontaneidade de Moreno, essencial à homeostasia interna e à adequação ao papel complementar. "A raiz da palavra ‘espontâneo' e seus derivados é o latim sponte, com o significado de por livre vontade. A espontaneidade tem a tendência inerente para ser experimentada por um indivíduo como seu próprio estado, autónomo e livre - isto é, livre de influências exteriores e de qualquer influência interna que ele não possa controlar. Para o indivíduo, pelo menos, tem todas as características de uma experiência livremente produzida."[36]
Rhonda Blair toca no aspecto paradoxal desta questão ao pensar A way of thinking about acting (capítulo 3) em termos que desafiariam a separação entre o teatro tradicional o teatro espontâneo e o psicodrama que orientou Moreno. "Uma das coisas que os actores se esforçam por fazer é ‘agir por impulso' (act on impulse), uma frase que se refere a ser capaz de responder espontaneamente sem censurar ou restringir a sua reacção. Um actor que não ‘age por impulso' não está presente ao momento, incluindo o momento dos seus parceiros de cena, e está a limitar a sua responsividade e imaginação. Mas o que é um impulso? O Dicionário de Oxford define como "súbita ou involuntária tendência para agir, sem premeditação ou reflexão (...) Quando falamos da capacidade de agir por impulso ao representar, estamos necessariamente a invocar a natureza paradoxal da espontaneidade no processo do actor, ‘pois a vitalidade espontânea do actor parece depender da medida em que as suas acções e pensamentos tenham sido automatizados, tornados uma segunda natureza.' (Roach, J R, 1993, The Player's Passion: Studies in the Science of Acting, Ann Arbor: 16)."[37]
Há uma citação de Moreno que faz justiça às características dialógicas da espontaneidade e da acção: "Na situação psicodramática, o mundo todo em que o actor ingressa - os enredos, as pessoas, os objectos, em todas as suas dimensões e no seu tempo e espaço - é para ele novidade. Cada passo que ele dá em frente nesse mundo cénico tem de ser definido pela primeira vez. Cada palavra que ele profere é definida pela palavra que lhe foi dirigida. Cada movimento que ele faz é definido, suscitado e configurado pelas pessoas e objectos com que se encontra. Cada passo por ele dado é determinado pelos passos que os outros dão na direcção dele. Mas os passos dos outros também são determinados, pelo menos em parte, pelos seus próprios passos."[38]
RESUMO
O autor aborda alguns dos conceitos centrais da teoria do psicodrama, formulados originalmente por J. L. Moreno, como fome de actos, espontaneidade e catarse integrativa, à luz de contributos mais recentes de modelos neurobiológicos e linguísticos no estudo da realidade dialógica ou conversacional, para lá das vivências de natureza subjectiva que associamos à empatia e à compreensão, procurando articular as áreas corpo, mente e ambiente, descritas no modelo do núcleo do Eu de Rojas-Bermudez.
ABSTRACT
The author addresses some of the central concepts of psychodrama theory, originally formulated by bJ L Moreno, as act hunger, spontaneity and integrative catharsis, in the light of more recente contributions of neurobiological and linguistic models in the study of dialogical or conversational realities in a subjective way associated to empaty and understanding, seeking to articulate the body, mind and environment, described in graphic nucleus of Ego model of Rojas-Bermudez.
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[2] Moreno, J L (1947) - Psychodrama First Volume, Beacon, trad. port. Psicodrama, Cultrix , São Paulo, pg. 123
[3] Moreno, J L (1947) - Psychodrama First Volume, Beacon, trad. port. Psicodrama, Cultrix , São Paulo, pg. 86
[4] Moreno, J L (1947) - Psychodrama First Volume, Beacon, trad. port. Psicodrama, Cultrix , São Paulo, pg. 86
[5] Bakhtin,M (1990) - Filosofiia postupka, trad. port. Para uma Filosofia do Acto, coord. Bruno Monteiro, Deriva, 2014.
[6] Bakhtin,M (1990) - Filosofiia postupka, trad. port. Para uma Filosofia do Acto, coord. Bruno Monteiro, Deriva, 2014, pg 20-21.
[7] Monteiro, B (2014) - Para uma Filosofia do Acto - Notas, in Bakhtin,M , trad. port. Para uma Filosofia do Acto, coord. Bruno Monteiro, Deriva, 2014, pg. 90.
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[16] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg 81.
[17] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg. 89-90.
[18] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg. 90
[19] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg. 86
[20] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg. 98
[21] Bruner, J (1990) - Acts of Meaning, Harvard University, trad. port. Actos de Significado, Edições 70, 2002, pg. 120
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[30] Wilshine, B (1991) - Role Playing and Identity, The Limits of Theater as Metaphor, Indiana University Press, pg. 11.
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[32] Freud, Além da Alma (Freud, Universal Pictures, 1962), Re: John Huston; Int: Montgomery Clift (Freud).
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[37] Blair, R (2008) - The Actor, Image, and Action: Acting and Cognitive Neuroscience, Routledge.
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