António Roma Torres


CÉSAR E CÍCERO


Edições Afrontamento

2014, editado em 2016

                     

“César e Cícero” reúne três peças em um acto através das quais se tenta entender o papel complementar e ao mesmo tempo antagónico que no final dos seiscentos anos da República de Roma desempenharam os seus dois principais protagonistas políticos: César, cônsul em anos sucessivos e general que estendeu o domínio romano sobre um imenso território , e Cícero, orador insigne e jurista em cujo pensamento ainda hoje se funda a ordem jurídica de muitos estados modernos.

 

“Até quando?” é um diálogo posterior à primeira eleição de César como cônsul, cargo que Cícero ocupara quatro anos antes, e debate a proposta de uma aliança que ficou conhecida como o primeiro triunvirato – marca a esperança de uma nova geração que ascende ao poder e interpreta a herança dos valores que recebeu.

 

“Brindisi” tem o nome da cidade italiana em que ambos se reencontram, no regresso de César do Egipto após a derrota de Pompeu, com quem Cícero se aliara na guerra civil que os opôs – expressa a desilusão e o cansaço de oposições que se apresentam estéreis mas se tornam difíceis de abandonar.

 

“Um homem para a morte” é o monólogo de Cícero, morto já César, quando espera os enviados de Marco António que o assassinarão – caracteriza a responsabilidade perante o juízo do futuro quando tudo parece ter sido já jogado. Mas os dilemas políticos das estratégias de poder e dos princípios que pretendem afirmar são provavelmente os mesmo de sempre e repetir-se-ão de geração em geração.

 

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Caio - Roma não é em Roma é onde eu estou. Disse e fez o general Sertório.

                                                                               ("Até Quando?", Parte I de "César e Cícero")

                


                  Caio - Há um momento em que um homem tem que decidir atravessar o Rubicão. Ou não.

                                                                                        ("Brindisi", Parte II de "César e Cícero")

 


Marco - O tempo é o mais estranho ingrediente da nossa acção. Ou inacção. Aqui espero e já não há tempo.

                                                         ("Homem para a Morte", Parte III de "César e Cícero")

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Sessão de Apresentação na Ordem dos Médicos (Porto) - Rua Delfim Maia em 26 janeiro 2017 pelas 21:30 pelo Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões, seguida de leitura pública de um excerto por António Domingos e Jorge Pereira, dirigida por Rosa Quiroga. Notícia em NorteMédico nº 70, Jan-Mar 2017, pg. 62.

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João Paulo Simões Valério: 


  Contrastes entre Oliveira Martins e Roma Torres

 

A imagem de Cícero de Oliveira Martins, tirada de Mommsen, mas igualmente em paralelo com personagens do Portugal do século XIX, é marcadamente crítica. Note-se a proliferação de adjectivos negativos usados ao desenhar o retrato de Cícero: "letrado" usado no sentido negativo como apresentado por Mommsen (e.g., Martins 1965, II: 194, 232, 234, 238, 397); "vaidoso" (e.g,

 

 

Martins 1965, II: 234, 240, 243, 375, 399), ou "o esperto Alec" (e.g., Martins 1965, II: 233, 240). 


Em contraste, o retrato de Roma Torres, no qual César elogia os discursos de Cícero no Senado (Torres 2016, 15) e onde as palavras de Cícero, ao contrário da imagem do "advogado-alfabetizado" Martiniano, são capazes de fundar "um novo Estado" (Torres 2016, 37) que deseja que César emule o consulado de Cícero de 63 a.C. (Torres 2016, 43). A admiração de César por Cícero é retratada ao longo de toda a peça: "Quem é que eu admiro mais do que tu, Cícero, espírito, orador, sábio?" (Torres 2016, 63). Mesmo na segunda parte, quando o ditador aponta para as nomeações que quer fazer nos gabinetes, faz um desejo e, ao mesmo tempo, confessa um erro: "Eles vão ouvi-lo mais do que eu. Foi talvez o meu maior erro". 


Passemos a algumas conclusões preliminares.


Os dois retratos são retratos diametralmente opostos, marcados por contextos e propósitos diferentes: Oliveira Martins, que entendia a história romana como um "tipo", concebe Cícero como uma personagem arquetípica. Esta imagem de personagem repete-se no século XIX em Chateaubriand ou Thiers e sobretudo em Almeida Garrett e Rodrigo da Fonseca - a denominação ordeira e política que o leitor português do século XIX conhecia e à qual Martins dedica mesmo um subcapítulo na obra Portugal Contemporâneo (1881). O objetivo é claro: Oliveira Martins convida o leitor a pensar o Portugal contemporâneo à luz do exemplum romano


António Roma Torres, por sua vez, prima nas suas peças por uma quase ausência de elementos coevos, exceção feita à introdução da Parte I e ao epílogo da Parte III. O autor propõe um cenário moderno na apresentação da primeira peça: "[...] num apartamento moderno, num futuro próximo. [...] César veste um uniforme militar e Cícero um fato e uma gravata" (Torres 2016, 11). No epílogo, Cícero é assassinado não por um gládio romano, mas sim por "uma rajada de metralhadora" (Torres 2016, 160). Estes pequenos traços gerais são, na minha opinião, um aviso sobre o perigo constante da militarização da sociedade, sem qualquer referência a Portugal ou a qualquer acontecimento mundial em particular. A contínua referência de Roma Torres à persona Cícero e ao respeito pela lei, pela liberdade, pela concórdia e, sobretudo, pela paz, pretende captar no leitor a dicotomia libertas uersus dominatio.


São autores diferentes, com objectivos diferentes e ambições diferentes. Oliveira Martins, recorde-se, tinha como objetivo a ascensão política. No mesmo ano em que publica a História da República Romana, adere ao Partido Progressista. Simultaneamente, entre janeiro e abril de 1885, tinha também feito uma pré-publicação de excertos dessa obra - que só foi publicada em julho - no Novidades, jornal português dirigido por Emídio Navarro, ilustre membro do Partido Progressista. ' É também importante recordar o projeto "Biblioteca das Ciências Sociais".


Roma Torres, como Oliveira Martins, é um autodidata. No entanto, Torres enfatiza os exemplos laudatórios da carreira política de Cícero. Ele até retratou César e Cícero com personalidades semelhantes, já que ambos são apresentados como antagónicos. 


Ainda assim, nem tudo é diferente. Ambas as recepções de Cícero buscam, através desse "Cícero paradoxal", examinar Cícero como o "advogado-literato" retratado por Martins e o herói da liberdade e mártir da República Romana retratado por Roma Torres - o herói e o anti-herói que são usados como figuras de instrução para o mundo contemporâneo.


João Paulo Valério 


in "Ciceronian portraits in Oliveira Martins and António Roma Torres.", Images, Perceptions and Productions in and of Antiquity, ed. Maria Helena Trindade Lopes & André Patrício, pg. 306-15. Reino Unido: Cambridge Scholars Publishing, 2023.


a partir de RETRATOS CICERONIANOS EM ANTÓNIO ROMA TORRES E OLIVEIRA MARTINS, comunicação apresentada no International Congress "In Thy Arms I Lost Myself" Images, Perceptions and Productions in/of Antiquity, Universidade NOVA de Lisboa, 9-11 de Outubro de 2019 Livro de Resumos, pg.43;